JANELAS QUE CHORAM
- Kevin de Almeida
- 14 de jun. de 2020
- 22 min de leitura
Atualizado: 10 de set. de 2021

Por:
KEVIN DE ALMEIDA
GILBERTO NASCIMENTO
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Está é uma obra de ficção. Os fatos aqui narrados são produtos da imaginação. Qualquer semelhança como nomes, pessoas, locais, fatos e situações do cotidiano deve ser considerada mera coincidência
Produção Editorial: Kevin de Almeida e Gilberto Nascimento
Capa: Gilberto Nascimento Fotos: Freepik (Couple Separation) Estruturação: Kevin Almeida Revisão: Rosângela Vieira
MARRY
Acordo de manhã, sinto o corpo pesado.
Não entendo muito bem o porquê, é muito cedo para raciocinar. Me ajeito na coberta quente e viro para o lado querendo deitar só mais 10 minutinhos. Aos poucos, uma memória ao fundo remói minha mente. Um pesadelo talvez? Não... infelizmente não foi um. Novamente me deito de barriga para cima, começo a me lembrar dos acontecimentos de ontem à noite. O sangue ferve em meu corpo e já não consigo mais dormir.
As imagens passam em minha cabeça, eu fico cerca de meia hora com o olhar vazio, encarando o teto azul marinho de meu quarto. Daniel desgraçado e inseguro! O vexame que me fez passar. Não vou perdoá-lo tão facilmente. Ele precisa pagar por isso. Eu necessito fazer algo para me livrar da raiva dele. Pego meu celular, entro no contato dele. Bloqueado! Agora vai sentir a minha falta. Essa é a consequência dos seus atos. Solidão! Coloco meu celular na cômoda e finalmente me levanto.
Enquanto escovo os dentes, os acontecimentos ficam passando repetidamente em minha mente. Que coisa mais chata. Não consigo absorver tudo isso. Me perco nos pensamentos e nem percebo que é a quarta vez que reinicio o ciclo de escovação. Calma Marry! Se controla!
Vou para a cozinha fazer uma vitamina. Separo uma banana, uma maçã e um copo de leite. Misturo tudo no liquidificador. Coloco também um pouco de açúcar, pois gosto da vida bem doce, e no momento amargo que estou, acabo colocando mais uma colher bem cheia. Ao ligar a máquina, o barulho intenso e alto me leva ao estado de minha mente na noite passada. Música, conversas paralelas, discussões, pensamentos eufóricos, a raiva e indignação que sentia. Tudo misturado numa dança confusa como essas frutas sendo trituradas. Assim estava também meu relacionamento. Desligo o aparelho, pois o barulho estava me deixando atordoada.
Ainda não acredito que ele foi capaz de fazer isso! É um imbecil mesmo. Como posso namorar uma criança dessa?! Ainda bem que o Marcelo estava lá.
Ultimamente Danilo só me decepciona. Parece uma criança de quinta série que quer ficar mimando a coleguinha de sala a todo momento. Isso me sufoca! Eu não quero isso! Eu não pedi isso! Um bebê chorão que quer comprar o meu amor com mimos, elogios, presentes, e tudo mais. Eu não quero ser comprada, quero ser conquistada! Quero um homem de verdade. Que me desafie, me seduza, não que me faça sentir pena. Danilo realmente é um pobre coitado.
Eu encho o copo e me dirijo para a janela da sala. Sento na minha poltrona de feltro preto brilhante, escuto os badalares dos pequenos sinos de metais pendurados na janela, que dançam com o vento produzindo um som doce e melancólico. É como se sentisse meu estado de espírito. Dou um longo gole na vitamina, seu sabor me tranquiliza um pouco, me lembra o sabor exótico daquela boca carnuda de ontem. Quem diria, depois de todos esses anos. Olho então para a paisagem em minha frente. Nunca entendi porque comprei um apartamento no sétimo andar. Não é alto o suficiente para me dar a vista de toda a cidade, nem baixa o suficiente para que eu poça ver os detalhes das pessoas que passeiam pela rua. Esse meio termo neutro e sem graça. Observo as ruas quietas e vazias. Nem os pássaros estão cantando hoje. O dia está cinzento, apático e morto. Será que é isso o significado de estar em quarentena. Eu sabia que começava hoje, só não esperava que o clima também mudasse tão bruscamente. É como se todos estivessem tristes. E estão na verdade... tantas mortes em tão pouco tempo. Isso é muito deprimente.
Bem, eu devo respeitar isto também, como se eu tivesse escolha. A loja em que trabalho foi obrigada a fechar as portas por um tempo. Então considero isso férias antecipada. Férias das quais vou viajar da sala para o quarto, e então para a cozinha e depois um tour pelo banheiro. Que ótimo. Mas por outro lado, isolamento é tudo o que preciso no momento, é o que fará Danilo pensar nas suas atitudes infantis e ver o quanto ele precisa de mim. Isso vai fazer ele me dar mais valor e respeito.
Ele precisa parar com esse ciúme excessivo. Toda vez a mesma coisa, que ódio! Ele conhece meu jeito, sabe como sou. Já deveria ter se acostumado. Não vou mudar minhas atitudes só porque ele é imaturo. Na verdade, não vou mudar nunca minhas atitudes. É isso que faz de mim quem eu sou, essa é minha essência, e se ele me ama, deve me amar do jeito que sou.
Mas é toda vez a mesma merda. Ele tinha prometido para mim que dessa vez iríamos sair e ele não faria seus showzinhos de ciúmes, essa era a única condição. E no começo até que acreditei.
Dou mais um gole profundo de vitamina, preciso sentir algo gostoso já que as memórias retorcem meu corpo em raiva. Olho para o céu, está cada vez mais escuro. Escuto ao fundo as trovejadas da tempestade que está por vir. O cheiro de chuva e suas pequenas gotículas de água tomam conta da minha janela. Perfeito! Há cenário mais deprimente para relembrar esta história?!
Danilo me levou para uma balada que sempre quis ir. Até estranhei de início, ele odeia baladas, diz que os homens são invasivos demais. Sim, eu sou uma mulher linda, claro que uma abordagem vai acontecer hora ou outra, mas isso independe do lugar. Ele também é lindo, vejo como as mulheres cobiçam ele. Mas ele é meu! Não me sinto ameaçada por qualquer piranha por aí.
Chegamos no local, boa ambientação, iluminação agradável, música maravilhosa. Pagou minha entrada e minhas bebidas. Umas duas horas no local e já estávamos nos divertindo. Eu gosto do Danilo, ele estava lindo com seus cabelos castanhos jogados para o lado num charmoso topete. Seu peitoral forçava levemente os botões de sua camisa Polo branca, e dançava comigo de forma carinhosa e alegre. Demos boas risadas e ele realmente não parecia incomodado ou ameaçado. Eu voltava a olhar para ele com amor, como o homem que havia me conquistado um dia. Me ofereceu outra bebida, danadinho, espero que esse álcool todo tenha segundas intenções. Não coloquei meu vestido pérola decotado à toa. E ele nem espera a surpresa quando ver o que estou usando por baixo. Na verdade, o que não estou usando. Ele se afastou por um momento e me deixou livre a dançar.
E então apareceu Marcelo. Ele foi meu primeiro amor adolescente. Éramos jovens, não sabíamos muito sobre relacionamento, na verdade, não sabíamos nada sobre nada. Mas a gente tinha fogo! Paixão! Sedução! Ahhh isso a gente tinha de sobra. Não tinha hora ruim para sexo. Todo lugar era adequado. E mesmo quando eu não estava muito no clima, ele me fazia ficar. Sua pegada na minha cintura tirava meu senso de equilíbrio corporal e emocional, como se eu fosse um barco desgovernado e com seu braço me direcionava às ilhas perdidas da luxúria. Meu capitão. Seu olhar penetrante me intimidava, poucos homens são capazes disto. É como se ele soubesse as sacanagens que eu queria fazer com ele, e ao mesmo tempo é como se me mostrasse que as sacanagens dele seriam muito piores. Sua áurea me fazia sentir o quanto me desejava, o quanto queria tirar a minha roupa e desbravar meu corpo como os europeus desbravaram o mundo tomando tudo que viram pela frente como suas posses. Isso tudo me fazia lembrar do sexo.... Ahhh o sexo.... Não era uma simples transa. Era como ler um poema grego, assistir um filme francês, saborear uma comida exótica da Tailândia. Era quente. Era molhado. Era forte. Selvagem! Começávamos românticos como Lordes, e terminávamos brutos como animais. Mordo meus lábios só de imaginar.
Imagino minha reação ao vê-lo. Todos aqueles pensamentos vieram como flash na minha cabeça. Não sei quantos segundos se passaram enquanto eu o encarava. Mas tudo bem, não é porque eu namoro que devo parar de me sentir atraída por outros homens. Isso é libido, é natural do ser humano. Mas confesso que a surpresa foi de me tirar o ar, e ele deve ter notado isso. Mas sou uma mulher de classe e me recomponho rápido. Encontrar logo ele na balada?! Sorte ou azar?
Bem, ele veio até mim e me abordou. Apesar do que eu sentia, do que eu senti, isso foi há muito tempo. Brigamos muito e não demos certo. Mas agora ele estava mais alto e mais forte do que nunca. Lindo demais. Me cumprimentou cordialmente e me abraçou com a mesma pegada de antigamente. Jogo sujo. O cheiro forte dele me trouxe mais lembranças impróprias. Olhou para mim como se estivesse lendo um conto erótico. Abusado, eu gosto disso. Mas o afastei com a mão em seu peito. Cumprimentei de volta e conversamos um pouco.
Poucos minutos após, vi Danilo retornando com a taça na mão, me olhando com cara de bunda. Apresentei Marcelo ao Danilo como um amigo antigo pois sabia que se eu falasse que era um antigo amante, a festa acabaria no mesmo instante. Apesar de já ter comentado sobre Marcelo, duvidei que lembrasse dele. Sempre está avoado de mais para lembrar de tudo que falo. Ainda assim, parece que Danilo o reconheceu. Ele já estava olhando super incomodado para Marcelo, que percebeu e, logo se impôs.
Danilo é meu namorado, mas ao invés de agir como homem imponente e marcar seu território, me proteger como se eu fosse sua joia preciosa, ele agia como uma garotinha assustada, ameaçada e excluída. Já Marcelo era dominador, tinha presença. Sua postura, seu olhar, suas palavras, tudo transbordava confiança. Isso era nítido para nós três.
Continuamos a conversar. Eu queria saber como estava a vida de Marcelo e ele queria saber da minha. Danilo tinha que aprender a se portar. Já tive alguns amores, e nossa noite não pode desmoronar só porque encontramos um deles. Nosso relacionamento deve ser mais forte que isso. Mas não demorou para Danilo se excluir. Parecia que ele não se esforçava para participar do assunto. Ficava olhando para mim e Marcelo, preso em sua mente perturbada. Devia estar se torturando com milhões de pensamentos. O que eu podia fazer se ele não fazia nada para se impor, só ficava ali pensando e pensando. Deveria ter atitude porcaria! Mas não... ao invés de participar da conversa, ele decidiu simplesmente sair. Deveria ter ido ao banheiro ou talvez buscar outra bebida, na realidade eu nem notei. O papo com Marcelo estava muito mais interessante. Não sei quantos minutos se passaram. Marcelo e eu estávamos bem entrosados, eu realmente estava me divertindo. Apesar das esquisitices de Danilo, ele não tinha dado nenhum show. Claro que eu queria que ele se mostrasse como meu homem e não como um garotinho emburrado e enciumado.
Marcelo fez seu jogo e pediu meu telefone. Era mesmo ousado, cara de pau, e ele sabe que eu gosto disso. Eu neguei, achei melhor eu pegar o dele. E assim o fiz. Nesse momento a merda ocorreu.
Danilo como uma criança mimada e desesperada, surgiu do nada e tirou o celular violentamente da minha mão, esbarrando no meu copo de bebida e o derramando em todo meu vestido. Que ódio! Fiquei furiosa! Eu tinha colocado especificamente aquele vestido por diversos motivos, e derramar bebida nele não era um deles. Fiquei com o corpo molhado, gelado, com cheiro de álcool. Algumas pessoas viraram e olharam para mim, umas assustadas e outras apontando e caindo às risadas. Que vexame! Que vergonha! Como Danilo pôde fazer isso comigo?!
Eu bato o copo de vitamina com força no apoio da janela sem perceber, e acabo o rachando. O resto de vitamina escorre por meus dedos e pela parede. Um trovão estrondoso estoura em meus ouvidos. Que susto! Puta merda! Olha essa sujeira! Danilo consegue causar uma situação dessas sem nem mesmo estar aqui, só por pensamento. Vou para lavanderia buscar um pano para limpar essa lambança, e enquanto meu corpo atua automaticamente na limpeza, a mente continua a linha de raciocínio da noite de ontem.
Marcelo me defendeu empurrando o energúmeno, que tropeçou em seus próprios pés e caiu feito um bebê desengonçado aprendendo a andar. Xingou ele, com razão, e eu xinguei muito mais! Quem ele pensava que era para tirar o celular da minha mão tão bruscamente assim?! Que merda Danilo! “Que porra está fazendo?!” eu disse para ele. Seu olhar estava vermelho, uma mistura de choro e sentimentos difíceis de distinguir. Parecia que tinha passado por um trauma. Pelo amor de Deus! Eu não estava traindo, não estava beijando, não estava me declarando, estava apenas conversando. Apenas conversando! Como ele é exagerado e neurótico!
Ele me acusou de traição, falando que eu estava pegando o número de Marcelo na cara dura. E qual o problema disso? Marcelo é um amigo antigo, e eu posso pegar o telefone de quem eu bem entender, ele não tem nada a ver com isso. Ele é meu namorado, não meu proprietário. Mas neguei, óbvio. Não queria lhe dar motivos. Conhecendo meu namorado, se eu confirmasse que peguei o número, ele começaria seu showzinho.
Mas ele pediu provas. Queria ver o meu celular. Filho da puta arrogante! Além de tudo, não confia em mim. Que tipo de namorado ele é? Ele não precisa de provas! Ele precisa confiar em mim e pronto. Claro que não o deixei mexer no meu celular. Não queria que pensasse estar com a razão.
Gritei com ele ali no meio da balada mesmo, para que as pessoas vissem o vexame que ele me fez passar. Queria que ele passasse pelo mesmo, só que pior. Se ele causou isso a mim, tem que receber como castigo um ainda pior, para ver se assim ele aprende de uma vez!
Apontei o dedo na sua cara e disse algumas verdades. A insegurança dele estava afundando o nosso relacionamento. Qualquer homem é sinal de perigo para ele. Qualquer situação é passível de showzinho. Ele achou o quê?! Que eu ia pegar o Marcelo ali mesmo?!
Ridículo! Danilo é ridículo! Eu repetia em minha mente enquanto esfregava forte e incessantemente a vitamina que derrubara. É como se as manchas da bebida fossem Danilo, e o pano era eu tentando limpar ele de minha vida. Não sei porque continuo com ele.
Então o covarde foi embora da festa. Acredita nisso?! Foi embora e me deixou lá. Disse que se eu queria tanto o Marcelo, era para ficar com ele. Virou as costas para mim e me deixou falando sozinha. É um retardado mesmo! Deixar uma mulher a noite sozinha numa balada. Imagina os perigos que poderiam acontecer comigo. Ele deveria me proteger, não me abandonar.
Covarde! Imaturo! Ainda por cima eu estava toda molhada por culpa dele, que vergonha. Ainda bem que Marcelo foi um cavalheiro e me ofereceu carona para casa. Achei a vingança perfeita. Ele não disse para eu ficar com Marcelo. Pois então eu fiquei. Quem não dá assistência, abre concorrência, não é o que dizem?
Terminei de limpar e me acalmei. Suspirei ao observar a chuva torrencial que caia em minha janela. Algumas gotas ricocheteavam em mim, mas não me importei. Eu amo a chuva, ela vem para lavar nossa alma e sentimentos. Abri toda a janela e deixei que me molhasse por completo. Fechei os olhos e me concentrei em sentir cada gota que atingia meu lindo corpo. Uma massagem divina eu diria. Respirei fundo, fechei a janela e me encaminhei para o chuveiro. O banho é como a chuva, só que quentinho. Coloquei uma música bem alta e deixei que a água quente percorresse meu corpo e levasse consigo todos estes sentimentos angustiantes.
DANILO
Fingimos ser o autor de nossas vidas, mas sabemos muito bem quem a escreve e escreve como bem quer. O destino ousa brincar com nossos sentimentos. Faz um rabisco do tamanho do mundo que nenhuma borracha consegue desfazer a burrada acontecida.
Já é a terceira noite mal dormida. Pensamentos nebulosos e confusos agem de forma brutal em minha mente, ainda mais agora que sou obrigado a ficar preso dentro de casa por causa de uma maldita pandemia. Uma pandemia que vai causar o maior estrago na minha vida.
Perder a mulher que amo. Marry!
Ah, Marry, aquela doce mulher com rosto meigo e coração de pedra que eu necessito como um remédio de quimioterapia. Preciso dela para sobreviver. Isso é fato! Pego o celular na escrivaninha ao lado e olho suas fotos. Ela é linda.
Três dias sem ela. Três dias sem falar nenhuma palavra pelo telefone. Devo ter sido bloqueado, pois todas as formas de contatos foram ignoradas com total sucesso. Nem as chamadas completam. Respiro fundo, mas o ar não preenche o vazio que está em meu peito. Jogo o celular para o lado e tento erguer meu corpo. Recuso-me a levantar, mas o faço forçado. Vou até a geladeira, pego um copo de leite e viro em um só gole, preciso recarregar as vitaminas do meu corpo.
Observo meu copo vazio e sujo, depois vejo a taça deixada por ela três dias atrás antes de sairmos para a festa. A maldita festa. A taça mantinha a marca do batom vermelho que ela usava naquela noite e a lembrança caiu como uma bomba em meu estômago.
Três dias atrás, estávamos em uma balada e lembro como se fosse agora: Marry estava linda, como sempre, usava um vestido de cor pérola que acentuava perfeitamente seu corpo e seu busto. Ela tem um belo par de seios volumosos. Os cabelos soltos que caíam sobre seus ombros largos lhe davam o ar de superioridade de sempre. Marry se achava uma estrela de cinema.
Uma Meryl Streep!
Ao chegarmos na balada, muitos olhares masculinos se voltaram para minha mulher, coloquei meu braço em volta de sua cintura para mostrar a todos que ela já tinha dono. Confesso, eu tinha um ciúme doentio e estranho, não sei explicar. Eu odiava baladas, aqueles homens olham as mulheres como se fossem carnes estampadas em um açougue, prontas para ser comidas. Marry é linda, bem apanhada, parece ter sido moldada por um escultor. Não deveria frequentar este tipo de lugar. E ela era minha. Eu a encontrei primeiro e estava junto dela como namorado e futuro marido.
O local até que era bom. Não curtia muito aquele ambiente lotado, com pessoas suadas e músicas que abalavam meus ouvidos, mas naquela noite deixei que a onda e a energia de Marry me contagiasse sem pensar no amanhã. Prometi a ela que não deixaria meus ciúmes e excesso de amor atrapalhar aquele momento. Agarrei-a, dançamos várias músicas juntos e nos intervalos trocamos beijos, gestos de carinho e juras de amor eterno.
Junto dela, não necessitava do amanhã, mas sim do agora e do para sempre. Naquele momento não sentia ciúmes, nem era ameaçado pelos demais ao redor. Pude perceber que o olhar dela para mim estava diferente, mais amoroso e romântico. Seu toque, suas unhas em minha nuca, seus lábios vermelhos colados aos meus. Tudo parecia novo. Tudo parecia o mesmo de quando nos conhecemos.
Decidi deixá-la um bocado e me direcionei ao bar para pegar uma bebida. Comprei uma Skol Beats bem gelada, servida na taça de boca larga com sal, gelo e limão, do jeitinho que ela gosta. Ela era tudo para mim e eu, como a amava, me via na obrigação de agradá-la no que pudesse. Tratava-a como uma criança de colo, com carinho e muito amor, mas Marry não gostava. Achava meus gestos infantis demais e tinha vergonha quando os fazia na frente dos outros. Eu lhe dava presentes quase todos os dias, mas muitos eram deixados no sofá, ou por cima da cama, não demostrava interesse em meus mimos, nem na forma que eu tinha de conquistá-la.
Às vezes me sentia culpado de ter uma mulher daquela ao meu lado, mesmo que me tratasse como um pobre namorado enjoado e grudento como chiclete no cabelo, Marry significava meu início e fim. Parecia obsessão, mas era minha forma de amá-la, de seduzi-la e de propor um casamento fiel e feliz.
Quando estava voltando para perto de Marry, depois de alguns minutos, me deparei com ela muito próxima de um homem. Foi no momento que senti um gosto amargo na boca e meu peito se expandiu. Eu o conhecia, era Marcelo, o primeiro namorado dela. Um homem alto e forte, moreno, autêntico e eles se encaravam como nunca, trocando sorrisos e acenos. Minha mulher estava se assanhando para aquele desgraçado enquanto ele se atirava para cima dela como um falcão. Então decidi não me aproximar e fiquei igual um cacto no deserto. Parado e observando como ambos ficariam sem minha presença.
Marry parecia não sentir minha falta. Não me procurava entre a multidão e estava bem tranquila na companhia do tal Marcelo. Eles gargalhavam como nunca.
Talvez estivessem lembrando da época que namoravam.
Resolvi voltar para minha mulher e ao me aproximar, Marry meio nervosa me apresentou Marcelo como amigo e eu já estava com uma cara de que havia comido angu azedo. Com raiva!
Eu sabia que Marcelo tinha sido muito importante para ela na época da adolescência. Aquele homem alto e de porte, sorria para minha namorada como se eu não estivesse ali, como se eu fosse invisível. E aquilo me incomodava constantemente, mas como havia prometido que essa noite seria diferente, resolvi ficar quieto no meu canto, com minha bebida.
Eles conversavam de tudo, mudavam de assunto várias vezes numa única música. Sentia-me como se estivesse segurando vela, como na época do colégio, sabe? Um casal de namorados e eu ali sozinho próximo a eles, mas aqui a história era totalmente diferente: Marry era minha namorada e quem deveria se sentir a vela era Marcelo. Não eu!
Não me esforcei a participar de nenhum assunto, afinal estava com birra, pois Marry também não se esforçava em me colocar na conversa nem dizer sobre nosso próximo passo juntos que seria o noivado. Ela não me tratava como seu namorado, como se eu fosse o homem dela.
Então foi na ousadia desgraçada dos dois que tudo aconteceu.
Marcelo teve a cara de pau de querer o número de telefone da minha mulher bem na minha frente e ela, como uma safada, teve a ousadia de pegar o dele bem debaixo do meu nariz. Senti-me um lixo naquele momento e pressionei minha testa para tentar me acalmar.
Marry tirou seu celular de sua bolsinha que combinava com seu vestido e começou a digitar os números mediante aos que Marcelo balbuciava.
O ódio subiu como uma erupção. Empurrei Marcelo com meu ombro e com brusquidão, retirei o celular da mão dela, mas para meu desespero esbarrei em sua taça e acabei derramando toda a bebida em seu belo vestido. Burro! Ganhei um tapa na cara e o estalo fez com que muitas pessoas se voltassem para nós. Éramos o centro das atenções. A bofetada ardia em minha pele como uma queimadura. Ganhei aquele tapa na frente de todo mundo e principalmente dele, do culpado de eu ter novamente estragado mais uma noite na vida da minha mulher.
Depois do tapa, fui jogado no chão por Marcelo que me golpeou com uma rasteira. Caí no chão como um tapete velho, esborrachado como uma banana podre em meio a xingamentos de Marry e dos olhares de susto e rejeição das outras pessoas. Era doloroso se sentir o invasivo quando na verdade eu não era.
Marry me xingou de “energúmeno”, “estupido”, “garotinho da mamãe” e de “grude”. Disse que eu precisava crescer primeiro para saber como tratar uma mulher como ela, linda e perfeita em tudo. Gritou para que todos ouvissem que ela não tinha culpa de ser a gostosa e ganhar olhares de todos.
Senti-me um derrotado. Totalmente humilhado naquele ambiente. Onde estava o amor de Marry por mim, que ao invés de ajudar-me a levantar, continuou dizendo palavras que cortavam meu coração em mil pedaços?
Enquanto gritava comigo, as lágrimas inundaram meu rosto e desceram e aí que ela começou a rir da minha cara, dizendo que eu precisava virar “homem” e praticar mais a minha sociabilidade que eu não possuía.
Com minha visão turva, custei a levantar, mas me ergui, cheio de vergonha e totalmente vermelho como um pimentão. Entreguei o celular de volta para ela, dei uma olhada para Marcelo, que me repudiava com olhar de nojo e pena e saí dali todo torto, pois ao cair, bati forte com a bunda no chão. Acho que machuquei a carne.
Deixei Marry sozinha e fui embora. Deixei-a com Marcelo, depois de ouvir palavras que se tornaram alfinetes enfiados profundamente em meu coração.
Volto com tudo para a realidade de agora. Trancado dentro de casa, sem poder trabalhar, sem poder falar com meus pais. Estou sozinho neste apartamento. Apenas meu silêncio e o choro da chuva lá fora. Respiro fundo e decido fazer um cappuccino na máquina que ganhei de presente de Marry. Enquanto preparo, verifico novamente o celular e vejo que nenhuma mensagem minha foi entregue.
Será que devo desistir? Será que realmente ela não vai querer mais nada comigo? Ah, Marry. O amor da minha vida. O meu maior amor do mundo.
Pego a xícara de cappuccino e vou para sala. Sento-me no sofá e cubro as pernas com uma manta salmão. Observo através da janela uma chuva torrencial cair e tamborilar nos vidros. Ligo a TV e naquele momento vejo uma reportagem sobre valor, sobre se amar e do poder do autoconhecimento. O assunto se tornou do meu total interesse, então começo a assistir com uma farta atenção.
“Prove o seu valor”.
Foi a frase que mexeu comigo. Provar meu valor seria demonstrar empatia e respeito comigo mesmo antes de qualquer outra coisa, como um homem e como ser humano. Assim eu teria o respeito das pessoas, principalmente de Marry que me achava um idiota. Tudo na verdade mudou depois que perdi meu emprego. Da noite para o dia, fui de administrador para Uber. Sim, é o que achei para pagar meus boletos, leva-la aos melhores lugares e planejar um noivado que talvez... Nem venha acontecer.
Não tenho medo de trabalhar. Não tenho vergonha de ir à luta. Se tiver que recolher lixo para ter o que comer à noite, vou com um sorriso no rosto. É muita indignação acharem que ser catador de lixo é um trabalho humilhante. Trabalho nenhum é vergonha e Marry sabia disso. Jamais deixaria ela passar necessidade, nem que eu tivesse que dobrar o turno.
Aproximo-me da janela e comtemplo a chuva tempestiva com raios e trovões. O silêncio havia acabado e a música agora era da vida natural. Pego novamente o celular.
Nada.
E foi assim durante mais dois dias, até eu ver que ela finalmente havia me desbloqueado. Sua foto, seu status, seu Instagram e Facebook agora apareciam para mim, mas já era tarde.
Durante cinco dias pude comtemplar o meu valor perante o espelho. Nestes cinco dias, a chuva foi minha companheira e mesmo que a dor e a tristeza existissem nessas horas, analisei que podemos ser felizes de outras formas, com outras pessoas ou com o que a natureza nos entrega.
Chorei muito junto da chuva e próximo da janela que chorava comigo. Arrastei o sofá para perto dela e coloquei a última rosa que eu havia dado de presente para minha mulher, mas como descaso ela deixou no copo d’água em cima da pia.
A rosa que já não tinha mais pétalas e a janela que chorava com os pingos da chuva que caíam, eram minhas companheiras neste período de quarentena em que, a cidade havia decretado ficarmos em casa para total segurança. A rosa e a janela me enxergavam nos momentos que eu decidia continuar sendo um tapete velho de Marry, ou me erguia e voava como o de Aladdin.
Amo-a mas preciso me amar primeiro. Preciso me valorizar mais.
Foram anos de muito amor, amor grudento, eu reconheço. Muitas tentativas de agradar quem não tem gosto ou quem acha que tem um próprio. Muitos anos sendo pisoteado feito merda de cavalo e agora não podia continuar com isso. Há vida lá fora e vida com total abundância. Essa pandemia vai passar, a chuva vai cessar e vamos voltar a sorrir fora destas paredes. Só preciso sorrir sem me sentir um lixo novamente. Sem me culpar por ser a pessoa que sou. Esse é meu caráter e ninguém vai mudar.
Sinto o celular em minhas mãos vibrar. É Marry! Ela está me ligando, mas decido não atender. Logo uma chuva de mensagens faz o celular cantarolar e vibrar como pipoca na panela. Ignoro.
A janela chora, assim como minha alma. Não é mais uma tempestade igual dias atrás. Agora é uma garoa fina, calma e melancólica, assim como meus sentimentos, tranquilos e cheios de paz.
Movo meus olhos avidamente para a tela do celular, respiro fundo e abro o aplicativo de mensagens.
“Oi”. “Cadê você?”. “Por que não me procurou?”. “Atende essa porcaria de telefone”.
Visualizo e não respondo e ela cai matando em cima de mim. Acusações, chantagens emocionais, drama e muitas, muitas palavras que cortavam meu coração. Fique firme e seja forte! Aceitava aquelas palavras como espadas em minhas costas, sangrava, mas sei que as feridas iriam cicatrizar.
“Eu achava que você me amava, mas você não presta. Deve estar com outra piranha aí.”
Foi a gota d’água. Sentir-me uma bosta, um namorado besta e sentimental, tudo bem, mas dizer que tenho outra é inaceitável. Sou fiel e sempre serei. Mesmo que não acredite. Compromisso comigo é sagrado e ponto final.
Sinto-me forte e capaz de viver sem Marry. Sinto-me corajoso em perceber que ela não é tudo para mim na vida. Não é meu remédio de quimioterapia que eu achava que necessitava. Há outros medicamentos e estamos em constantes rodas gigantes da vida, há várias reviravoltas, há tristeza e felicidade. É só pegar o barco, segurar o remo e saber para que direção seguir.
Digito uma mensagem: “CHEGA! Não quero mais.” Visualizada com sucesso e rapidez. Não vejo Marry digitar nada. Está quieta e calada. Deve ter se conformado rapidamente, pois não sou o homem que ela queria em sua vida.
Então o celular vibra de volta.
“Está falando sério? Meu amor, não é para tanto”. Recebi e enviei outra: “Estou sendo sincero e peço desculpas por terminar por telefone, mas a minha coragem e a pandemia não permitem levar isso mais à frente. ”
Apesar de doer tanto. Essa decisão é a certa.
Marry começou a me telefonar e a enviar mensagens dizendo que eu não podia fazer aquilo com ela, pois ela era linda, um mulherão e nenhum homem nunca havia terminado primeiro. Era ela quem terminava. Sorri, afinal, sou o primeiro a sair fora de uma mulher que mais parece uma patricinha fora de série que quer um namorado só para pisotear com sua sandália salto alto e fino. Tô fora!
“Você é um bosta. É um desgraçado. Vai ver que perdeu uma mulher que lhe dava de tudo. ”
Visualizei e não respondi.
“Por favor, não faz isso. Eu te amo, de verdade. Durante esses dias neste apartamento fechado percebi que você é o homem da minha vida. Você é perfeito para mim. Não faça isso”.
É uma pena que tenha percebido tarde demais. Essa é a tradição dos casais. Faz a merda e quando pisa nela é que percebe realmente o que fizeram. Respondi com um emogi de sorriso.
“Amor, eu te amo. Não se precipite. Estou aqui pronta de braços abertos para te amar como sempre fiz. Quero me casar com você, ter filhos. Não importa se você está trabalhando como autônomo, se você é um grude ou se me dá presentes horrorosos, o que importa é o nosso amor. ”
Autônomo. Grude. Presentes horrorosos. É... as pessoas não mudam, por mais que se esforcem. Estou no caminho certo na decisão de terminar.
Abro a tela e começo a digitar uma mensagem: “Eu acreditei muito que era o homem da sua vida, mas suas atitudes me fizeram enxergar que não sou. Não sou o cara com quem você quer se casar e ter filhos. Sou o cara grudento que te amava, que te dava carinho e que de alguma forma queria demonstrar todo esse amor de diversas outras formas, mas você simplesmente ignorava. Não temos necessidade de continuar com essa bosta de relacionamento. Eu sendo seu tapete enquanto você pisa com força, assim como fez em nossa última noite. ”
Minha vista turva e as lágrimas vazam. Estou chorando sim, pois ainda a amo, mas precisamos abrir mão do que amamos para sermos felizes.
Envio a mensagem acima e digito outra:
“Minha maior dor é você não ter visto o valor que eu lhe dava do meu jeito bobo e idiota de ser, e minha maior decepção foi perceber isso só agora, depois de muitos anos. Mais uma vez, desculpe-me por estar terminando nosso relacionamento por telefone, mas é o que temos para hoje. ” Envio junto de um emogi de joia.
Olho para a janela que chorava, as pequenas gotículas começam a secar, pois o sol no horizonte está a raiar. Ainda estou triste, como em dias de chuva, mas sei que o sol vai aparecer, vai me reerguer para o alto e me fazer brilhar novamente.
Respiro fundo, com a certeza de que dias melhores virão.
KEVIN DE ALMEIDA
Sobre o autor:
Kevin de Almeida vive em Santo André, SP
Desde pequeno era apaixonado por histórias em suas mais variadas mídias, como vídeo games, filmes, animes, livros, mangas, etc.
Em seus estudos, focou em descobrir os mistérios da mente. Sua inspiração sempre foi entendê-la para alcançar a felicidade, e achar as melhores formas de confrontar qualquer tipo de conflito interno.
Certificado em Life Professional Coaching por Izaque Vacholz
Curso de Escrita Criativa com Tiago Novaes
Bacharel em Ciências e Tecnologias pela Faculdade Federal do ABC, com estudos nas áreas de filosofia, sociologia, ética, didática, psicologia e mais.
Desde então, trabalha com escrita no intuito de transcrever seus conhecimentos em suas obras com debates filosóficos e reflexões que instiguem os leitores a aprender com as experiências e pensamentos dos personagens.
A imersão e divertimento são sempre garantidos.
Para acessar mais obras, entrem no site kbarbosa102.wixsite.com/narrandotudo
Insta: @escritorkevindealmeida
Face: Kevin De Almeida
Site: kbarbosa102.wixsite.com/narrandotudo
GILBERTO NASCIMENTO
Sobre o autor:
Gilberto Nascimento nasceu e cresceu em Joanésia, região sudeste de Minas Gerais. Filho de uma professora, começou a escrever desde cedo em peças teatrais no colégio do qual também atuava. Aprendeu a gostar de ler com a mãe que comprava revistas em quadrinhos. Em 2011 formou-se em artes cênicas. Em 2012 escreveu a web-série para Youtube “Maldades da Vida” do qual fez o protagonista vilão César Ribeiro. Seu primeiro livro “A Viagem Inédita” foi desenvolvido no ano seguinte e depois não parou mais de escrever. Em 2014 lançou seu primeiro CD Gospel “Blindado por Deus”, algo considerado um sonho. Atualmente mora em Ipatinga, também em Minas Gerais e estuda Pedagogia.
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