Gildmor, a Taverna das Criaturas Noturnas
- Kevin de Almeida
- 4 de mai. de 2020
- 18 min de leitura
Atualizado: 9 de jul. de 2021

O pântano é escuro e denso. Árvores com troncos grossos preenchem todo o local, com galhos e folhas altas que deixam poucos feixes de luz da lua tocarem o chão, dificultando ainda mais a visão. O solo é húmido, pegajoso e lamacento, fazendo com que Nicol use demasiada força a cada passo para desgrudar as galochas felpudas do chão. Ele levanta o braço direito para esconder o rosto das fortes rajadas de vento gélido que cortam a paisagem assoviando por entre as plantas.
Mais uma vez tira do bolso o pergaminho roubado. Ele remove a fita vermelha que o prende, e solta o papiro velho e amarelado. O cheiro de guardado sobe instantaneamente. Nele continha a localização de uma taverna. Mas não qualquer taverna, esta era Gildmor.
Uma lenda antiga dizia que numa taverna amaldiçoada chamada Gildmor, as criaturas horrendas da noite se divertiam e interagiam racionalmente. Isto ia contra tudo que Nícol viveu. Ele era um andarilho que viajava de cidade a cidade roubando livros e pergaminhos. Todas as histórias de aldeões diziam que as criaturas não pensavam duas vezes antes de atacar, e que os tolos que tentaram dialogar com elas foram devorados vivos antes de terminar a primeira frase. Apenas duas vezes Nicol se encontrou com tais criaturas, uma vez conseguiu escapar sem ser visto, noutra ganhou a cicatriz que percorre horizontalmente seu rosto da orelha esquerda até o centro do nariz, dividindo-o em dois, resultando em uma voz fanha. Nenhuma das vezes conseguiu ver a criatura com clareza. Conseguiu apenas identificar os pelos e garras que o feriram.
Mas desta vez é diferente, o pergaminho diz a localização e a fala secreta para adentrar a taverna. E ele está devidamente preparado. Em Stambolt, a cidade que estava anteriormente, conseguira um bom amontoado de pelos de cachorro com um senhor manco dono de canil. Consigo tinha pedaços de ossos, cartilagens e alguns tecidos de animais que comera. Havia fervido tudo produzindo uma gosma grudenta que serviu para grudar os pelos por todo o seu corpo, que vestia apenas uma cueca e suas galochas. Isso o aquecia, porém, a sensação era horrível, pinicava seu corpo fazendo-o coçar-se como um cachorro. O cheiro de pelos sujos juntos a carniça usada para fazer a cola era tão forte que fazia seu nariz debilitado ficar seco e retorcido, fungando a todo momento. Sua garganta queimava pelo mesmo motivo, deixando sua voz ainda mais rouca e estranha. Nícol grudara pedras pontiagudas em seus dedos para se assemelhar a garras. A voz estranha, os pelos sujos e o cheiro forte eram perfeitos para ele se passar por um monstro noturno qualquer. Se soubessem que era humano, seria devorado no mesmo instante.
Seu coração bateu mais forte no momento que passou pela terceira rocha triangular, avistando uma enorme pedra arredondada com uma árvore maior ainda em cima dela. Suas raízes contornavam a pedra toda, deixando poucos espaços em aberto. Espaços esses que forçando muito a visão, conseguia se ver uma espécie de luz fraca esverdeada saindo de lá.
Era ali! Exatamente como descrevia o pergaminho. Nicol aproximou-se de uma árvore menor que ficava grudada à frente da pedra, e bateu nela três vezes, como o pergaminho mandava. Suspirou fundo de ansiedade, fazendo-o grunhir e tossir estranhamente por conta dos pelos. Após um breve instante, a árvore vibrou, algumas folhas caíram e o chão estremeceu. Lentamente a árvore se curvou, fazendo o topo dela ficar frente à face de Nicol, da mesma forma que um adulto se curva para encarar uma criança. Dois olhos amarelados e medonhos se abriram em meio ao tronco, o fitando em tom de ameaça. Nicol congela e arregala seus olhos assustados. Jamais pensara que a árvore também foste uma criatura da noite, quanto mais o porteiro da taverna. Uma espécie de abertura negra começa a aparecer no centro da árvore. Estacas pontiagudas de madeira rodeiam o buraco que se curva numa meia lua com as pontas para baixo. Um grunhido grosso sai lá de dentro, como se a criatura estivesse impaciente com o silêncio. No momento que Nicol percebeu que aquela era a boca da criatura, as palavras secretas saíram de si como um reflexo espontâneo.
A criatura parece se acalmar, apesar de não perder o jeito ameaçador. Ela o olha com desprezo e volta a ficar ereta. Seus movimentos são bem lentos, fazendo estalos barulhentos da madeira. Em seguida, dá um largo passo para a esquerda, revelando uma abertura com uma pequena placa de ferro pendurada. Gildmor estava esculpida nela. Nicol hesita por um momento, se dando conta que a lenda é verdadeira e que a partir de agora sua vida correria sério perigo. Mas antes que outro pensamento lhe viesse à cabeça, sente-se empurrado para dentro por uma galhada forte nas costas. Ele cai de joelhos ao chão apoiando suas mãos enquanto vira rapidamente sua cabeça para trás. Percebe o braço madeiresco da criatura retornando da pancada que o dera, enquanto volta para posição original tapando por completo a passagem que entrara. Tarde demais para arrependimentos.
Agora preso ao lado de dentro, lentamente torna seu rosto a olhar ao seu redor. Seus olhos se arregalam de espanto, sente seu corpo todo tremer como se estivesse com um frio estrondoso. Não frio vindo de fora, do ambiente, mas sim, um frio interno, que se assemelha ao frio da morte. Sua garganta seca ainda mais, enquanto seus pulmões parecem não funcionar direito. Respirar se torna uma tarefa quase impossível. Está em estado de choque. Sente sua cabeça pesada enquanto sua visão escurece aos arredores. Náuseas socam seu estomago como se fossem ogros. Mesmo assim, ele sabe que precisa estar alerta. Chacoalha a cabeça para se recuperar um pouco, e olha detalhadamente a tudo que está em volta.
A estrutura do local não difere muito de uma taverna comum. Há mesas, balcões, portas para banheiros, um bar com diversas bebidas. Porém o clima é completamente diferente. As mesas são altas, feitas de tronco cascudo e escuro, aparência mofada com musgos gosmentos em sua base. O chão é extremamente sujo, manchado de sangue e restos de carniça, que fazem o ambiente feder como um necrotério. A música ambiente era cantada por um homem nu que estava agachado e choramingando no pequeno altar do lado esquerdo. Ele era torturado ao vivo por pequenas criaturas verde escuro, com olhos grandes e amarelados, roupas beges como trapos de pano velho, magrelos e carecas com facas pontiagudas nas mãos. Incessantemente elas perfuravam o corpo do homem e o obrigavam a cantar, enquanto riam e zombavam da situação do pobre coitado que entre um verso e outro, gritava em agonia pedindo para pararem.
O bar era de longe o mais bizarro. Crânios com restos de pele e cabelos, alguns com dentes e olhos pendurados, outros apenas os ossos rachados, estavam enfileirados lado a lado, formando o topo do balcão, sustentados por braços e pernas humanos ainda em decomposição. A luminária à cima, era uma longa serpente com diversos buracos em seu corpo, de onde saiam as luzes iluminando copos feitos de ossos esculpidos. Nas prateleiras grudadas à parede logo atrás, estavam potes de vidro com diversos animais. Morcegos, escorpiões, suricatas, corvos e uma ala com filhotes de diversas espécies. Garrafas cheias com líquidos escuros e variados dividida em duas alas: sangues e venenos. Um grande molusco com dezenas de olhos ao redor da cabeça se encontrava atrás do balcão, seus inúmeros tentáculos roxos efetuavam tarefas distintas. Uma delas, espremer o sangue de um esquilo vivo para dentro de uma jarra com sapos e andorinhas, enquanto outro tentáculo com um pedaço de pedra macetava tudo constantemente. A gosma resultante foi servida. Quem a pegou foi um esqueleto robusto que, mesmo sem músculos, aparentava-se muito forte. Aproximadamente uns 2,5m de altura, com cordas grossas de fibras naturais gastas, mas ainda firmes, que circundavam sua cintura, costas e braços. Ao se virar, um enorme ushanka se destacava em sua cabeça, cinza e felpudo, com um símbolo no centro que lembrava muito uma bomba. Ele se dirigia a uma mesa que estava à frente de Nicol. Apesar da taverna estar cheia de criaturas horrendas, esta mesa é a que o chamara mais atenção. Do teto, acima dela, descia uma corrente fina com um anzol na ponta, onde estava presa uma cabeça de fada do bosque que emanava luz pelos olhos, nariz, orelhas e boca, iluminando as pedras brilhantes e carteados que ali estavam. Três monstros tomavam acento ao redor, contando com o esqueleto que acabara de sentar. Um ogro, quase tão grande quanto o esqueleto estava sentado à direita. Sua mão áspera e com crostas que subiam aos braços, pegou um copo e o levou a sua boca avermelhada que mostrava uma única presa amarela saindo de baixo para cima no canto esquerdo. Um pouco da bebida cai sobre sua camiseta encardida e manchada, que lhe mostrava o peito por falta de botões. Seu nariz redondo e achatado funga fortemente, dando para escutar de longe seus fluidos sendo sugados para a garganta. Ao seu lado estava uma fumaça branca ocupando uma cadeira. Tinha um formato humanoide, com dois olhos azuis cintilantes no que parecia ser sua cabeça. Seu corpo era levemente transparente, e não era possível identificar um rosto, se era gordo ou magro, homem ou mulher, porque a fumaça ficava constantemente mudando de forma em ondulações.
Nicol, travado com tanta informação, não percebera que um quarto monstro havia se levantado desta mesa e ido ao seu encontro. Um lobisomem azulado, muito peludo, com garras tão grandes e afiadas quanto navalhas saindo de seus pés e mãos. Corpo levemente curvado, com orelhas pontudas a cima de seus olhos vermelhos que o encaravam com desejo. Seu focinho abriu-se num sorriso sarcástico, revelando presas do tamanho de seu polegar. A criatura parou em frente de Nicol e se inclinou com seus braços em sua direção. Neste momento, Nicol fechou os olhos, sentiu o coração parar de bater por um instante, enquanto um frio tremendo congelava seu peito. Era seu fim.
-Olhe galera! Um dos meus! – Diz o lobisomem enquanto levanta Nicol e o abraça com um dos braços.
-Pfff! Pobre novato! Será seu novo mascote. – Zomba o fantasma.
- He he he, mais um cachorrinho! – A voz grave do ogro ecoa enquanto ele bate algumas palmas.
- Seremos melhores amigos a partir de hoje! Eu e você! Você e eu! Unidos como lobo e lua! – O lobisomem continua em tom embriagado.
- Não depois que ele conhecer seus podres, Totó! – O esqueleto sorri enquanto embaralha as cartas.
- Novamente este jogo decrépito?! – Revira os olhos azuis fantasmagóricos.
- Vemos aqui alguém que tem o que esconder! – O esqueleto o encara em tom desafiador.
- Eu não tenho o que esconder! Sou a mais pura maldade em lobo! Ruindade total! Juro pelas minhas pulgas! – Resmunga o lobisomem enquanto puxa Nicol à mesa, fazendo-o sentar-se.
- Bah! Hahahaha – Gargalha o esqueleto – Logo você dentinho?!
- Orrub não gosta desse jogo. – Resmunga o ogro.
- Claro! Você sempre perde seu lerdo! – Novamente o esqueleto cai nas risadas.
- Para suportar esta lastima, apenas com drinks de sangue novo. – O fantasma encara o esqueleto.
- Ora seu cachaceiro metido a burguês! – Murmura o esqueleto – Oh pedaço de sushi! Cai pra nós uma rodada dos seus melhores filhotes! – Ele grita para o molusco barman.
- Auuuuuuuhhhh! – Uiva o lobisomem. – Isto vai ser interessante! Não é mesmo... – Ele encara Nicol curioso – Qual é mesmo seu nome?
- Bando de trogloditas sem modos! – Acusa o fantasma – Queira nos perdoar. Sou Arepor, o atormentador. Muito prazer.
- Orrub é meu nome – Diz o ogro apontando para si mesmo.
- Eu sou TB, o líder desse bando de idiotas – Se gaba o grande esqueleto.
- Você não lidera nem seus próprios ossos. – Aponta Arepor.
- Pelo menos eu tenho ossos! – Retruca TB.
- Sou Hoac – balança a cauda enquanto diz o lobisomem.
- Hoac é “cão” ao contrario hahaha! – Ironiza TB
- Cale a boca seu amontoado de ossos! – Hoac rosna. – E você, como chama?
- Sou... – Sua garganta estava tão seca de medo que fez Nicol engasgar. – Sou Nicotch! – Ele tosse com a voz grossa por conta do nervosismo.
- Nicotch?! – Hoac o encara confuso. – Nome estranho para um lobisomem.
- Disse o “cão”. – Retruca TB sarcástico enquanto dá as cartas aos monstros.
- Há há há cão! – Ri lentamente Orrub enquanto aponta para Hoac com o dedo.
- Já disse para se calar, maldito! – Vocifera Hoac. – De onde você é? – Se direciona para Nicol.
- Sou de Gan... Ganderberg. – Nicol gagueja novamente.
- Estranho. Já estive em Ganderberg e nunca o vi. – Hoac se aproxima desconfiado e o fareja. – Seu odor me é familiar.
- É que estive em Stambolt recentemente! – Exclama Nicol rapidamente, com medo da desconfiança da criatura.
- Ahhh! As cadelas de Stambolt! É daí que vem seu cheiro! – Põem os braços na cintura e sorri maliciosamente mostrando suas enormes presas – Seu lobinho cafajeste!
- As dondocas já terminaram?! – TB os olha com impaciência– As cartas já estão na mesa!
- Eu terei o prazer de começar. – Arepor baixa duas cartas e compra outras duas.
- Orrub passa sua vez. – O ogro diz enquanto encara suas cartas bem de perto.
- Tá vendo! É por isso que você perde seu imbecil! – A voz grossa e zombeteira de TB ecoa enquanto ele baixa três cartas e compra outras três.
- Eu apenas uma – Consente Hoac e o faz.
- Bem... – Sem fazer ideia de que jogo era aquele, Nicol baixa duas cartas e compra outras duas.
- Meu senhor... – Arepor diz espantado. – Ou tu es muito ousado, ou es deveras...
- Estupido! – Interrompe TB – São dois goblins de escudo! Ninguém baixa cartas como essas! Já vi que esse está no papo.
- Até que enfim! Orrub está com sede! – O ogro se inclina para pegar as bebidas na bandeja da pequena criatura humanoide e azulada que acabara de chegar para os servir.
- Foi parir os filhotes seu inútil?! – A voz ecoa junto ao tapa estalado que TB desfere no garçom pequenino.
- Quanta brutalidade desnecessária. – Arepor desvia o olhar. – Se ele mexericar para o dono estamos condenados.
- Aquele velho não manda em mais nada por aqui. Ninguém é capaz de me derrubar – Se gaba o esqueleto.
- Quem se importa, temos sangue de filhotes! – Põem os braços sobre a mesa e começa a salivar como um cachorrinho pidão. – A bebida mais alcoolica e saborosa para uma criatura da noite. Vamos beber e começar logo de uma vez!
- Eu lhe recomendo este. – O fantasma empurra um pequeno copo para Nicol. – Nada queima mais a garganta que a fofura de um pequeno gatinho. – Completa Arepor enquanto os monstros ao redor encaram Nicol com ansiedade.
- Ok... – Nicol sabia que não podia recusar para manter seu disfarce, ele fecha os olhos e vira o copo. – Coff! Coff! Meu Deus! – Ele tosse e segura o vomito.
- Hahaha fraco como uma mula! – Zomba TB enquanto vira seu drink.
- Agora sim, devidamente preparados para começar – Arepor afirma após todos esvaziarem seus copos. – Eu começarei baixando um trio de bruxas sombrias.
- Droga! – Exclama o lobisomem zangado enquanto joga suas cartas na mesa.
- Foi mais burro que o Ogro! – Bate a mão na mesa e começa a gargalhar. – Já sabe as regras Totó. Desembuche sua pior história! – Completa TB ansioso.
- Não sei porque ainda jogo essa porcaria. – Hoac baixa a cabeça desolado. – Tudo bem. Numa lua cheia qualquer, sai para caçar. Fui para uma vila comum procurar humanos de bobeira para devorar. Senti cheiro de sangue novo, e me escondi pelos arbustos como de costume. A frente eu vi um garotinho agachado, abraçando seus joelhos, encarando um monte de terra que se destacava no chão. – Nicol o encara se imaginando que tipo de atrocidade Hoac teria feito com o pobre garoto. – Firmei minhas pernas e me preparei pra atacar, daí o garotinho jogou uma bolinha no monte de terra e disse: “Por que você não pega mais a bolinha Max... Por que papai jogou um monte de terra em você? Como a gente vai brincar assim agora? ”.
- Nããããoooo! – TB o olha antecipando a história. – Você não fez isso!
- Eu me mexi para enxergar melhor, fui descuidado, então o garoto me viu, se virou e disse: “Um.... Um cachorrão! Só pra mim! ”. Ele saiu correndo e me abraçou. Daí ele pegou a bolinha e...
- Hahahahahahahahahaha – Risadas escandalosas dos monstros interrompem a história dele! Nicol se espanta, e olha para os monstros sem entender nada do que está acontecendo. – VOCÊ BRINCOU DE IR BUSCAR A BOLINHA COM O GAROTO?! – Exclama incrédulo TB enquanto tenta tomar um pouco de ar das gargalhadas.
- Ele tinha acabado de perder o cachorrinho! – Encabulado, Hoac se justifica. – Eu também já fui humano sabia, também já perdi um cachorrinho. E agora, cachorro é como se fosse parente pra mim, sabia.
- Sem desculpas Hoac! Você acalmou e brincou com uma criança humana! Não tem ato mais bondoso e vergonhoso do que este! – Enxuga as lagrimas da risada, Arepor.
- Ei Totó! – TB arranca o próprio dedo mindinho. – Eu tô tão tristinho. Brinca comigo. – Ele então joga seu próprio dedo esquelético. – Vai pegar!
- Hahahahahaha – O ogro cai para trás com a cadeira numa risada eufórica e escandalosa!
- “Há há há” – Hoac imita as risadas ironizando-as. – Muito bem, muito bem. Vamos prosseguir a porcaria do jogo.
- Espera! – Nicol o interrompe e pergunta indignado – Você realmente não devorou a criança?
- Essa pelúcia com presas tem o coração mais mole que o corpo do Arepor! – TB insinua enquanto recupera o ar.
- Eu vou roer todos os seus ossos seu desgraçado! – Rosna ferozmente Hoac.
- Lobisomem é uma maldição, não uma espécie, como você deve bem saber. Deste modo, não há muitos por aí. – Arepor cochicha aos ouvidos de Nicol enquanto TB e Hoac discutem. – Hoac é muito solitário e carente, não perde uma oportunidade de afeto. – Ele continua enquanto o ogro se recupera da queda e ajeita novamente as cartas nas mãos.
- Bem, desta vez Orrub aprendeu – Abaixa suas cartas triunfantemente, o ogro.
- Blasfêmia! – Arepor se vira encarando as cartas. – Quatro Druidas zumbis?! Isto é deveras embaraçoso.
- Não acredito! – TB se vira para o ogro. – Bate aqui seu Sherek duma figa! – Eles batem as mãos em comemoração.
- Não é tão engraçado agora, não é mesmo?! – Hoac fala sem nem um pouco da empolgação que estava no início do jogo.
- Bulhufas. Estava confiante desta vez. – Suspira o fantasma. – Pois que seja. Não pode ser pior que Hoac. – Ele toma ar e começa. – Numa esbelta noite de inverno, o atormentador procurava vítimas para fazer jus ao seu nome. E foi numa antiga casa de madeira robusta, que eu, Arepor, iniciava uma aventura da qual não me orgulharia. Entrei vagarosamente, observando com atenção os aposentos, móveis, quadros e tudo mais que poderia usar a meu favor para assombrar o pobre desavisado. Foi então que avistei, no centro da sala de estar, numa cadeira de balanço antiga que rangia feito os ossos de TB, uma senhora a costurar. Pensei com meus culhões: “Óh, o que ei de fa...”.
- Acelera, o aspirante a Shaksper! – TB o apressa.
- Ninguém mais dá valor à poesia nesta espelunca. – Reclama Arepor. – Pois bem. Fiquei invisível e comecei. – Ele se levanta, faz grunhidos com a voz, como que para testá-la, e começa:
- Eu vim lhe buscar.
- É você Jardas, meu querido esposo? – O fantasma imita a voz da senhora.
- Não! Eu sou a morte! Sua hora chegou! – Ele continua.
- Já não era se em tempo, pois ande logo com isto, meu querido. – Imita a voz novamente.
- Espera! – Nicol pensa um pouco alto. – Ele está interpretando a cena?
- Sim, ele adora fazer isso. – Responde Hoac – Quando ainda vivo, Arepor era um ator famoso. Nunca se libertou do passado. Talvez por isso continua vagando por aí.
- Estou entediando os senhores? – Arepor os encara bravo, enquanto Hoac e Nicol se calam. – Como eu ia dizendo: “ Não tens medo da morte senhora? Do sofrimento eterno? Da angústia e solidão? ”
- Meu querido, eu sou só. – Arepor representa a senhora. – Meu marido descansa em paz, meu filho me deixou e nunca mais me visitou. Isto é sofrimento para mim.
- E da dor? Não tens medo dela? – Ele continua.
- Minhas juntas doem, meus ossos rangem e minha vista arde. A dor é minha única companhia nesta vida, meu querido. – Sua voz fina e trêmula na encenação.
- “ Mas... E suas lembranças, perderá todas elas. ” Eu dizia sem opções enquanto a senhora retrucava: “ Minhas lembranças... ” – A voz fina novamente.
- A senhora se levantou, foi até uma pequena raque, abriu uma gaveta e pegou uma minúscula caixa de música. – Arepor narra a cena. – Ela então a deu corda. Um som de pura arte, trilha sonora de uma de minhas peças que atuava enquanto vivo.
- Minhas lembranças -, Arepor continua imitando a senhora. – São de tempos longínquos, quando ainda era uma bailarina e conseguia dançar alegremente. Peço-lhe um último desejo dona morte, concede-me uma última dança?
- Bfff! – Hoac engasga em sua própria risada.
- Há há há há! – Estapeia a mesa rindo fortemente, o ogro.
- De atormentador à galã da terceira idade! – TB zomba enquanto gargalha com vontade. – Patético!
- É sério isso?! – Nicol indaga incrédulo ao fantasma.
- Infelizmente sim meu caro Nicotch. – Consente o fantasma com as risadas de seus companheiros ao fundo.
- Ei Gasparzinho, me diz uma coisa – TB chama a atenção. – O que te tocou mais? A música ou a velha? Hahahahaha
- Estou enrugado o suficiente para você, “meu querido”? – Orrub diz enquanto achata o rosto com as mãos e manda-lhe beijos.
- Era... – Nicol olha para a mesa confuso. – Era para vocês serem horrendos e maldosos.
- Pois é novato. – TB concorda. – Eles são uma vergonha!
- Você se inclui nisso TB – Hoac o encara. – Ainda não baixou suas cartas.
- Se quer tanto vê-las, tome! – TB baixa as cartas. – Quatro golens de elixir.
- Seu cretino trapaceiro! – Hoac mostra suas presas afiadas.
- Não, não. Isto é habilidade, Rex. – Retruca TB. – O novato e o ogro podem começar suas vergonhas. – Ele zomba.
- Pois Nicotch não baixara suas cartas ainda. – Diz Arepor.
- Nem precisa -, insinua TB. – Depois de sua primeira jogada, não tenho nada a temer. Anda! – Se dirige a Nicol. – Baixe logo este lixo!
- Tudo bem... – Nicol consente retraído e o faz.
- Impossível... – Diz Arepor perplexo. – Cinco dragões negros. Não vejo isso acontecer a pelo menos quinze invernos.
- NÃO! – TB soca a mesa zangado. – Ele roubou! Sua bola de pelos sacana!
- Hahahaha – Começa a rir Hoac. – Parece que a caveirinha ta bravinha. Pelo visto não era apenas nós que tínhamos historias vergonhosas.
- EU JÁ DISSE QUE ELE ROUBOU! – Vocifera TB enquanto se levanta e derruba a mesa com violência.
- Ei! O que é isso TB. – Reclama o ogro incomodado. – Seja um bom perdedor.
- Seja um cavalheiro e honre seus ossos. – Completa Arepor.
- Seu pulguento desgraçado! – TB se aproxima de Nicol e o levanta pelo pescoço.
- Calma! Eu não... – Não consegue completar a frase enquanto tenta se livrar inutilmente da mão de TB que o sufoca.
- Solta ele TB! – Ameaça Hoac. – Mesmo se o matar, ainda terá que contar sua história.
- Me... Matar?! – Nicol pergunta dificilmente sem conseguir respirar.
Neste momento de confusão, todos os monstros estavam com sua atenção voltados à TB, e nenhum deles reparou que algo se aproximava. Atrás deles, uma sombra enorme de aproximadamente 3,5 metros. Ao lado dela, o pequeno garçom azulado que fora agredido por TB.
- Foram eles? – A grande criatura pergunta, enquanto observa o garçom consentir com a cabeça. – Você e o barman já podem ir agora. – O monstro pequenino confirma e sai correndo.
Uma mão enorme e acinzentada, ataca a cabeça de TB. O impacto foi tão forte que arrancara a cabeça do corpo esquelético. As criaturas em volta se afastam em alerta, e observam com medo o dono da taverna. Um Troll gigantesco, com membros largos e musculosos, corpo cinza azulado com tatuagens tribais percorrendo todo seu lado direito. Duas prezas gigantescas saiam de sua boca, quase alcançando seus pequenos olhos negros furiosos. Cabelos longos e brancos se prendiam em tranças, descendo por suas costas cascuda. Sua barba, também branca, era acompanhada de quatro grossos chifres, dois de cada lado do rosto, que pendiam por seu maxilar. O monstro traz sua mão em frente a seu próprio rosto, encarando a cabeça de TB que segurava, a olhando com desprezo.
- Você era a criatura que ninguém conseguiria derrubar? – Diz o Troll em tom de deboche. – Deixe-me tentar.
Em seguida, ele usa seu braço que segurava a cabeça para fazer um movimento de alavanca, e socar pesadamente o corpo de TB ao chão, fazendo com que os ossos se quebrassem e se espalhassem por toda a taverna. O barulho e a cena fazem com que todas as outras criaturas da taverna fiquem espantadas e assustadas.
- TB! Não! – Grita Hoac enquanto avança ferozmente ao Troll.
- Maldito! – Diz o ogro enquanto lhe desfere um gancho de esquerda.
Hoac morde o pescoço da enorme criatura enquanto usa suas patas para cravar suas garras em seu peito. Porém, a pele do Troll é grossa demais, e nada acontece. Até mesmo o soco pesado de Orrub se iguala a socar uma parede, nenhuma reação ou desequilíbrio. O Troll pega o lobisomem com facilidade, e com o mesmo movimento que usou para destruir TB, soca o lobisomem em cima do ogro, fazendo os dois se espatifarem no chão violentamente. Em seguida, ele agarra os dois, e os arremessa fortemente contra a entrada da taverna, acertando as costas da criatura que parecia uma árvore. O impacto é tão estrondoso, que derruba o porteiro, fazendo aparecer uma saída para a taverna.
- SAIAM TODOS, JÁ! – Ordena o Troll num grito ensurdecedor.
Todos os monstros batem em retirada velozmente, atropelando uns aos outros. No tumulto, Nicol assustado e desesperado, corre aos tropeços para sair de lá. Por um momento achara que os monstros podiam ser amigáveis, mas depois de ver o Troll acabar com seus “companheiros” sem nem soar, voltou a temer os monstros e a querer toda distância possível deles. Já pensava que não conseguiria escapar de lá com vida, resolveu então aproveitar a segunda chance que recebeu do destino, para não cometer o mesmo erro.
O Troll ainda enfurecido, chuta os restos de ossos de TB para fora do estabelecimento. Agora com a taverna vazia, escuta ao fundo uma doce voz, advinda de uma pequena sombra perto do balcão.
- Você expulsou todos?
- Si... sim. – Gagueja o Troll. – Perdão, não queria lhe acordar.
- Sabe o que isso significa? – A doce voz pergunta ansiosamente.
- Espera, não...
Antes que o Troll pudesse terminar, a pequena criatura saiu correndo rapidamente, usou a mesa caída de apoio e pulou no rosto do monstro, o derrubando de costas ao chão. Ela levanta as mãos, segurando um estranho objeto, e o desce fortemente com um golpe no meio da testa do gigante.
- É hora do chá papai! – Diz a pequena Troll com sua xícara de brinquedo nas mãos.
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