MURMÚRIOS DE UM SÁBIO EM ISOLAMENTO
- Kevin de Almeida
- 8 de jul. de 2021
- 8 min de leitura
Atualizado: 10 de set. de 2021


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Está é uma obra de ficção. Os fatos aqui narrados são produtos da imaginação. Qualquer semelhança como nomes, pessoas, locais, fatos e situações do cotidiano deve ser considerada mera coincidência
Produção Editorial: Kevin de Almeida
Capa: Jamilly Coelho | @mood.criativa Estruturação: Kevin Almeida
Escrita: Kevin de Almeida
Processo Criativo: Kevin de Almeida Revisão: Camila Silvestre
MURMÚRIOS DE UM SÁBIO EM ISOLAMENTO
O que dizer? São onze horas da noite, estou sozinho em minha casa escura. Achei que, quando envelhecesse, teria muitas pessoas ao meu redor. Hoje vejo que, ao passar dos anos, meus amigos foram se perdendo nas corrupções deste mundo esdrúxulo. Mas não estou reclamando, a solidão sempre me pareceu mais como liberdade. Tenho meu gato, Perlas, e uma boa xícara de chá verde quentinho para me acompanharem madrugada adentro. Minhas costas doem ao me sentar em minha poltrona de feltro preto. Abro meu notebook, preciso escrever alguma coisa que ainda não sei. Fico em devaneios dentro de minha mente perturbada. Milhares de pensamentos passam rápidos como trens-bala em um emaranhado de nós ferroviários, indo cada um para uma direção totalmente diferente. E, ainda assim, a vaga pergunta se repete. O que dizer?
Por que todos querem dizer alguma coisa? Uma necessidade gritante de ser ouvido, de ser notado, não importa o motivo. As pessoas nem se importam se o que dizem está realmente certo ou errado, se vai machucar ou curar alguém. Elas só dizem porque querem, porque sentem que precisam. Como se as palavras aleatórias da boca de um ansioso fossem preencher o vazio dentro de seus peitos. Como se, quando alguém o ouve, ele passe a ter existência, passe a ter sentido, se torne um ser de fato, e não só mais uma pessoa.
Por que as coisas são assim...? Se todos querem dizer, por que não se reúnem em fila e falam um de cada vez? Eu digo o motivo. Todos querem falar, mas ninguém quer ouvir. Todos têm tempo para expor o que pensam, mas não dispõe do mesmo tempo para compreender os outros. Eles não se importam com o que os outros dizem, porque não se importam com os outros ou com o que sentem. Só se importam com o que eles mesmos falam, só se importam com eles mesmos. Estão tão presos em suas próprias dores e angústias, tão cheios de ódio, inveja e desejos suprimidos, que tudo o que querem é uma chance de botar para fora. Mas de que adianta fazer isso se ninguém os escuta?
Olho para Perlas, que ronrona ao se esfregar em mim. Afago seu focinho com meus dedos velhos e retorcidos. Saboreio um gole profundo de chá antes de ser inundado novamente por minhas questões sem respostas.
Penso comigo, se o problema é o querer falar, por que as pessoas não o fazem sozinhas em seus quartos? Desta forma, não haverá conflitos, nem quem possa discordar. Haverá apenas suas próprias reflexões em voz de tom fervente. Daí percebo o equívoco da afirmação “As pessoas não escutam as outras”, quando na realidade deveria ser “As pessoas não escutam”, pois nem a si mesmas querem ouvir. Suas palavras batem nas paredes do aposento e voltam, alvejando-as como flechas pontiagudas. Ao se ouvirem, vêm à tona suas falhas cometidas, suas derrotas vergonhosas, seus objetivos longe de serem alcançados. O resultado tem muitas formas: depressão, ansiedade, estresse, angústias. Quando estão sozinhas, esses sentimentos são intensificados. É preciso que outra pessoa tenha ciência de seus sentimentos, das coisas pelo qual passaram, para que se sintam compreendidas. A empatia acolhe e ameniza.
Pego Perlas no colo e digo a ele: “Irônico não?! Todos querem ser ouvidos, mas ninguém quer ouvir. ” Ele não parece gostar muito, empurra meu rosto, que mais se parece com as raízes de uma árvore anciã, e se joga ao chão. Degusto mais um gole de chá doce para ajudar a descer essa verdade amarga.
É triste. Se organizassem um meio para ensinar as pessoas a ouvirem, poderiam sanar as dores um dos outros, ajudar com suas experiências e opiniões. Mas todos estão presos no seu próprio mundo, já aceitaram o caos e a crueldade e nada os abala, a não ser que seja consigo próprios. Quando os parentes de seu vizinho morrem, você não vai acolhê-lo, mas quando seus parentes morrem, você quer que te acudam.
As pessoas são egoístas. Elas devolvem o que recebem, e o mundo está cheio de dores, de vinganças, de invejas e manipulações. Mas amor?! O que é amor numa época como esta? As pessoas não recebem amor, e por isso não dão amor. Em época de pandemia, ao invés de as pessoas se unirem para se ajudarem, elas compram tudo dos supermercados e estocam, tirando a oportunidade de seus irmãos de espécie. Deveria ser época de doação! Mas já foi enraizado nas profundezas de nosso ser que ninguém se importa conosco. E assim o repetimos, nos tornando os próprios animais que tanto tememos e julgamos.
Um vento gélido adentra sem ser convidado. Sinto calafrios em partes que pensei não funcionarem mais. Envelhecer não é agradável. Passamos a juventude à flor da pele, errando e sofrendo por nossa imaturidade, e quando chegamos aos setenta, como eu, temos a sabedoria necessária para viver, mas não nos resta um quarto da energia de outrora.
Precisamos quebrar o ciclo. Interromper esse interminável ódio gerado uns pelos outros. É tempo de ouvirmos, sentirmos, ajudarmos e amarmos. Finalmente temos tempo para ficar em casa com a família, mas todo comentário que leio na internet é: “não aguento mais a minha esposa”, “meus filhos são demônios”, “estou surtando de tanto ficar em casa”.
Meses atrás, estavam reclamando de trabalhar, de que não tinham tempo para fazer o que gostam, para ficar com a família, começar um novo hobby e relaxar. Mas vimos que o problema não é o tempo, mas as pessoas em si, que vivem numa fuga constante da realidade. Queremos escapar de nossas próprias vidas, nos entorpecendo mentalmente com trabalhos, drogas, séries, fofocas e qualquer outra coisa que nos faça esquecer de quem somos e de nossas vidas miseráveis, a não ser que seja para se lamentar, dizer o quanto a vida é injusta, o quanto Deus te esqueceu e não te ajudou quando precisou. Mas, para que milagres aconteçam, precisa-se preparar o terreno. Como quer ganhar na mega-sena se nunca joga? Como quer enriquecer se continua fazendo o mesmo trabalho, da mesma forma, com os mesmos comportamentos? Como quer ser mais inteligente se não estuda? Para que as coisas mudem, você precisa mudar. As pessoas querem muitas coisas, mas nenhuma delas está disposta a pagar o preço necessário. Querem do modo fácil, de mão beijada, sem esforço. Optam pelos caminhos errados. É mais fácil tirar do próximo do que você mesmo produzir. Cobiçar o que o outro tem ao invés de pedir que lhe ensine a ter.
Esfrego meus olhos cansados. Me levanto e vou para perto da janela. Apoio meu antebraço na parede enquanto me direciono para a vidraça. Não olho nada em especial, mas só o fato de observar uma paisagem ampla, me alivia. Estou muito preso em meus pensamentos, focado em minhas próprias revoltas. O senhor Perlas se esfrega em minhas pernas, mas não lhe dou a devida atenção. Estou inundado pelos delírios de minha mente.
Mundo de orgulhosos, onde todos querem ter razão. Não existe humildade para pedir que se ensine a ser melhor. O resultado é isto, um bando de animais gritando uns com os outros, defendendo seus lados políticos, sem ao menos ter ido estudar a fundo o que o outro lado e o seu próprio realmente propagam. Ficam na base do achismo, do que leem na internet em fontes duvidosas, escutam de amigos e veem em vídeos de celebridades que também “acham”, assim como eles. Estão tão desesperados em estar certos e em ser ouvidos que não se importam em xingar e agredir uns aos outros por não concordarem com suas opiniões. E assim continua, a pobreza nos matando, a fome nos matando, a doença nos matando, a violência nos matando, nós mesmo nos matando, e os que deveriam estar cuidando de nós, estão usufruindo do nosso dinheiro, da nossa saúde e do nosso trabalho, enquanto brigamos para defender qual dos nossos agressores é o correto.
Não existe o correto. A verdade sempre foi e sempre será uma ilusão. Maldito seja aquele que inventou a verdade e a mentira. Dualidade maldita que matou milhões e milhões durante anos. Por que precisa ter um certo e um errado? Um Deus certo, um político certo, uma opinião certa. Não pode ter um meio termo? Uma terceira opção, em que ninguém está certo ou errado. Uma opção onde uns escutem os outros e se entendam para chegar numa conclusão em conjunto que favoreça ambos? O povo está cansado e ferido demais para isso. E, acima de tudo, emburrecido demais. Se há uma verdade que os estudiosos sabem, é que não existe verdade. Quanto mais se estuda e aprende, mais se vê que há muito a estudar e aprender, que nunca um homem conseguirá aprender tudo na vida.
Me recolho de meu quarto. Vou até a cozinha, pego um copo de vidro e minha garrafa de Jack Daniels. Chá não me era mais suficiente. Dois cilindros de gelo é o bastante. Volto para meu quarto e me sento novamente na poltrona. Encho o copo sem miséria. Rotaciono-o algumas vezes e o viro a intensas goladas, até sobrar apenas o gelo. Minha garganta queima enquanto meus olhos lacrimejam. Torno a encher o copo, e, enquanto o rotaciono, vagueio em conclusão de minhas injúrias.
Por isso a história existe. Cem anos não são o suficiente para aprender tudo na vida. Assim, o homem conseguiu uma forma de reter seu conhecimento após a sua morte. A escrita. Dessa forma, pode anotar todas as suas descobertas e todas as suas falhas, para que o felizardo que as encontrar possa continuar de onde parou. Abençoado seja aquele que evita cometer os mesmos erros por ler antecipadamente um livro. Sagaz aquele que leva um ano para aprender os conhecimentos resumidos de um sábio que levou dez para aprendê-los. O saber vem apenas de duas formas: por experiências e por estudos. As descobertas mais brilhantes são pela experiência, mas qual o sentido de se machucar para aprender, se você pode ler antecipadamente e adquirir o conhecimento sem passar pelas mesmas dores?
O tempo passa, e os livros caem ao esquecimento. Não é surpresa que um governo queime livros para se manter no poder, deixando a população à mercê da ignorância. Educação sempre foi e sempre será a maior arma contra o sistema. Isso nunca poderão tirar de você, e te livrará de qualquer controle da mente, e, mais ainda, lhe dará o controle de sua própria mente. Sim, as pessoas pensam que controlam suas mentes, mas são levianamente controladas por suas emoções, desejos, dores e angústias. Não recebem instruções sobre como lidar com a sociedade, com seus próprios pensamentos, com as pessoas em si. Tudo o que escutam é trabalhem, trabalhem, trabalhem, e se não enriquecerem, é porque não são merecedores. A sociedade constrói uma ideia tão forte de que precisamos ser ricos para ser felizes que, enquanto não o somos, nossa existência é invalidada.
Pobres pessoas presas em seus próprios mundos. Enquanto não encararem a si mesmas, nunca chegarão a lugar algum. Até um aplicativo de Uber sabe disso: para se chegar a algum lugar, primeiro precisa-se saber onde está.
Perlas volta a miar para mim, mas, desta vez, está com seu cobertor entre os dentes. É tarde da noite, sei que está incomodado, já se passou da hora de acariciá-lo até que encontre seus sonhos felinos. Olho para meu notebook. O cursor pisca como um metrônomo na página em branco. Estaria mentindo se dissesse que não fiquei deprimido em minhas linhas de raciocínio. Acariciar Perlas em meio de cobertores felpudos e quentinhos nesta noite fria me parece muito mais acolhedor do que expor a realidade de uma sociedade doentia. Sei que estou fugindo da realidade, assim como os que critiquei em meus pensamentos. Mas o whisky dá forças a minha decisão.
“ Vamos, Perlas, já é tempo de suas carícias.”
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